Tese de doutoramento em Psicologia, na especialidade de Psicologia Clínica, apresentada à Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra A presente investigação procurou estudar o fenómeno de filicídio que, na sua definição mais ampla, remete para a morte de uma, ou mais, crianças, perpetrada por um, ou ambos, os pais biológicos. O objetivo principal da investigação (de carácter exploratório) centrou-se na compreensão das razões pelas quais os pais matam os filhos. Definiram-se, como objetivos mais específicos, o estudo, análise e caracterização do funcionamento psicodinâmico, cognitivo, psicopatológico de pais que cometeram filicídio para, na interface da psicologia clínica, se promover a discussão sobre os putativos fatores de risco/protetores que possam ser considerados na prevenção do crime. No que concerne ao estudo empírico, desenvolveu-se uma investigação mista, de natureza qualitativa (estudo de casos múltiplos), compaginada com técnicas e métodos quantitativos (com recurso a múltiplas técnicas de recolha e tratamento de dados). A amostra foi constituída por dez pais que haviam cometido filicídio e sido sujeitos a medidas privativas de liberdade. Como plano metodológico, procurou-se, através da aplicação de uma bateria de instrumentos de avaliação, caracterizar e compreender o funcionamento psíquico dos participantes, considerando uma multidimensionalidade de níveis de estudo: caracterização do funcionamento e dinâmica da personalidade (mediante: entrevistas semiestruturadas; questionários sociodemográficos; pesquisa documental; teste do Rorschach; versão portuguesa do Symptom Checklist-90-Revised; O Inventário Clínico do Autoconceito e a versão portuguesa do Levenson’s Self Report Psychopathy Scale); caracterização do funcionamento cognitivo e neuropsicológico (Teste Vocabulário e Cubos/WAIS-III; Matrizes Progressivas-Forma Geral e a versão portuguesa do Montreal Cognitive Assessment); caracterização da vinculação (Escala de Vinculação do Adulto/EVA). Dos resultados obtidos, através de entrevistas, questionários sociodemográficos e pesquisa documental, foi possível constatar que os participantes demonstraram, na sua generalidade, percursos pautados por abandono escolar e formação académica limitada e histórias relacionais precoces caracterizadas por maltrato e/ou negligencia, a par da vivência de fatores de stresse socioeconómicos (contextos de pobreza, famílias numerosas). Destacaram-se, ainda, contextos, transversais a todos os casos, de violência doméstica (família nuclear), e o exercício de parentalidade inadequada. A par, na sua maioria, os pais deparavam-se com desemprego ou inactividade profissional. Destacou-se, ainda, na sua generalidade, a ausência de culpa pelo crime cometido, o que parece aproximar-se de uma denegação major da experiência homicida, talvez pela experiência enlouquecedora que isso represente. Por seu turno, através da avaliação da personalidade (Rorschach), constataram-se, no essencial, dinâmicas internas pautadas pela pobreza emocional e simbólica, predominando a concretude do pensamento e o estrangulamento dos recursos cognitivos e emocionais. Dos resultados do SCL-90-R, ressaltaram sintomas de depressão, somatização e ideação paranoide, bem como indicadores sumários de perturbação emocional. Simultaneamente, não se constataram indicadores consistentes de comportamentos psicopáticos (LSRP-VP). Por seu turno, foi possível constatar que os participantes se autoavaliam com um bom autoconceito, sentindo-se aceites pelos adultos mais significativos, autónomos e competentes (ICAC). Já da leitura integrada dos resultados obtidos no âmbito da avaliação cognitiva destacaram-se constrangimentos cognitivos, nomeadamente ao nível do raciocínio hipotético-dedutivo e dificuldades no âmbito da abstração espacial e síntese visuoperpetiva, ao que acresceram indicadores (pré-clínicos) de declínio cognitivo ligeiro. Por último, procurando-se estudar a natureza e qualidade dos padrões de vinculação (EVA), observou-se que o grupo de pais filicidas obteve resultados médios nas dimensões Ansiedade, Conforto com a Proximidade e Confiança nos Outros. Uma leitura conclusiva dos resultados obtidos permite compreender o agir filicida como resultado de um impulso, destrutivo e fatal, resultado de uma panóplia de fatores de perigo que, em interdependência, se traduzirão no exponenciar do risco de maltrato e capitulando no impulso fatal. No essencial, o agir filicida será o reduto final do adoecer intrafamiliar (exponenciado seja por constrangimentos pessoais, socioeconómicos ou por circunstancialismos familiares e culturais). Importará, nesta leitura do agir filicida, compreender o modo como se poderão articular as interconexões entre os fatores individuais, as relações afetivas (precoces/ao longo da vida), as relações sociais e familiares, os mecanismos sociais, o processo de parentalidade [potencialmente variáveis mediadoras], o adoecer mental e a vulnerabilidade individual para o agir filicida. Neste sentido, conjetura-se que o impulso filicida não se inscreverá numa matriz de imprevisibilidade e aleatoriedade, mas será o último reduto e resposta, fatal e agida, a uma escalada de indicadores em que os pais se foram inabilitando, progressivamente, para o exercício da parentalidade. Enfatiza-se, considerando-se a escassez de estudos no âmbito do filicídio, a importância do desenvolvimento de investigações científicas que possibilitem aprofundadas leituras de síntese e promovam o delineamento de matrizes de risco do fenómeno e estratégias preventivas do maltrato intrafamiliar. The present investigation aimed to study the filicide phenomenon which, in its greater definition, refers to the death of one, or more, children, perpetrated by one, or both, biological parents. The investigation’s main objective (based of exploratory design) focused on the comprehension of the reasons due to which the parents kill their children. With that connection, more specific aims were set. Namely, the study, analysis and characterization of the psychodynamic, cognitive, psychopathological functioning of parents who committed filicide, so as to, in the interface of Clinical Psychology, promote the discussion about the risk/protective factors which may be considered during crime prevention. Regarding the empirical study, a study based on mixed investigation methods was developed, namely a qualitative investigation (multiple case study design), combined with quantitative methods and techniques (resourcing to multiple collecting techniques and data treatment). The sample was made up of a total of ten parents who had committed filicide and who had been subjected to custodial measures. As a methodological design, it was sought to characterize the participants’ psychic functioning through the application of a battery of evaluation instruments, taking into account the multidimensionality of the study levels: functioning characterization and personality dynamic (semi-structured interviews; sociodemographical questionnaires; document research; Rorschach test; Symptom Checklist- 90-Revised/Portuguese version; O Inventário Clínico de Auto-Conceito and Levenson Self-Report Psychopathy Scale/Portuguese version]); characterization of the cognitive and neuropsychological functioning (Vocabulary and Cubes test/WAIS-III; Progressive Matrices - General Form and Montreal Cognitive Assessment/Portuguese version); characterization of attachment (Adult Attachment Scale – Portuguese version). As results, through the analysis of the interview’s content, the sociodemographical questionnaires and document research, it was possible to verify that the participants showed, on a general level, paths connected with abandoning school and limited academic training, as well as cases of early childhood relationships characterized by abuse and/or negligence, along with socioeconomic stress (poverty contexts, large families). Cases of domestic violence (nuclear family) and inadequate parenting stood out and were transversal to all cases. Along with this, in the majority of cases, the parents were faced unemployment contexts or periods of professional inactivity. In general, the lack of guilt in committing the crime also stood out, which seems like denial of the homicide experience, possibly due to the maddening experience which it represents. Therefore, with the personality assessment (Rorschach), there were identified, essentially, dynamics based on emotional and symbolical poverty, predominating the thought’s concreteness and the strangling of cognitive and emotional resources. From the SCL-90-R, we could observe that depression symptoms, somatization and paranoid ideation were common, as well as global indicators of emotional disturbance. Simultaneously, no consistent indicators of psychopathic tendencies were verified. It was also possible to verify that the participants assessed themselves with a good self-concept, autonomous and feeling accepted by significant adults (ICAC). From analyzing the results obtained within the cognitive assessment, cognitive constraints stood out particularly connected to hypothetical-deductive reasoning, spacial abstraction and visual-perceptive synthesis, adding to (pre-clinical) indicators of a slight cognitive decline. Lastly, aiming to study the nature and quality of the attachment patterns (EVA) we could observe that the group of filicidal parents obtained average results relating to anxiety, comfort with proximity, and confidence in others. A conclusive analysis of the obtained results enables us to understand that the filicidal act is a result of a destructive and fatal impulse. Therefore, resulting in a panoply of dangerous factors which, interdependently, will be translated into the risk of abuse, capitulating into the fatal impulse. Essentially, the filicidal act will be the final answer to the intra family stress (intensified either through personal, socio-economical constraints or through cultural and family circumstances). It is important to understand the way in which we can articulate interconnections between individual factors, affective relationships (early/throughout life), the network of social and family relationships, the social mechanisms, the parenting process [potentially mediating variables], mental illness and the individual vulnerability towards the filicidal act. In this sense, we conjecture that the filicidal impulse is not registered in matrix of unpredictability, but will be the last stronghold, fatal and produced from impulse. Leading to an escalation of risk indicators, in which the parents were insidiously disabling themselves of the act of parenting. We emphasize, considering the lack of filicide studies, that the importance of the development of scientific research which enable synthetic readings and promote the delineation of risk matrixes and strategies to prevent intra family abuse.