Adriana Friedmann é pós-doutora em artes (IA-UNESP), doutora em antropologia (PUC-SP), mestre em educação (UNICAMP) e licenciada em Pedagogia (USP). Desenvolve pesquisas nas áreas de educação, antropologia e pesquisas biográficas em processos de autoconhecimento e escuta com diversos profissionais. O que Friedman apresenta nesse ensaio é fruto de seus estudos, pesquisa de pós-doutorado e de dados produzidos junto aos participantes de diversos grupos que coordena ou atua como formadora e pesquisadora na área da educação. A autora nos conduz por um caminho em que somos levados a refletir sobre nossa própria constituição por meio de um exercício que nos direciona a olhar para dentro no processo de escutar a nossa própria história. Nos relatos apresentados no decorrer do livro, Friedmann enfatiza que não é possível escutar verdadeiramente as crianças se não buscarmos as nossas origens e conseguirmos compreender a nossa identidade, comportamentos e trajetória. Dessa forma somos convidados pela autora a “recuperar recortes” de nossa vida e memórias da infância para trazermos à tona e compreender o contexto vivenciado no presente. Já a partir do início ela nos deixa com duas inquietações que vai nos acompanhar por toda leitura: “Até onde sua história de vida trouxe você? Que indícios e que pistas já apareciam em sua infância e prenunciavam o ser humano que você se tornou? O prefácio foi escrito por Luiza Helena Christov, supervisora do seu pós-doutoramento, que conecta o que Adriana traz em suas pesquisas sobre narrativas biográficas com as ideias de Paulo Freire, em relação ao direito da palavra, de aprender e pensar coletivamente e de valorizar as nossas próprias histórias. Christov defende a importância de o educador ter um encontro consigo mesmo no exercício de rememorar e narrar a sua trajetória, e justifica que: [...] em primeiro lugar […] o educador é esse ser que se coloca em escuta, que tem diálogo com compromisso, e esse movimento de acolher o outro exige o movimento de acolher a si mesmo. Exige o movimento de pensar quem sou eu no encontro com o outro. Exige o movimento de reconhecer as marcas culturais e sociais que o compõe para reconhecer as marcas culturais e sociais que compõem cada um dos estudantes presentes para o diálogo. (p. 12). Salienta ainda que a pesquisa tem em sua essência a “pedagogia da escuta”, na qual a pesquisadora acolhe e recebe cada narrativa de forma singular para que quem narra a sua história tenha a possibilidade de reconhecer-se como parte importante de um todo que se inicia no próprio indivíduo. O livro está estruturado em cinco capítulos. O primeiro é intitulado: “Histórias de vida entrelaçadas” em que a autora expõe suas motivações para o aprofundamento das pesquisas biográficas e por meio da sua própria história defende a importância da criação de espaços de escuta, de fala e de conexão com a própria infância. Reforça que as pesquisas das origens e raízes multiculturais individuais e coletivas trazem consciência da imensa diversidade que estamos envoltos no universo humano. Ao passarmos pelo processo de autoconhecimento podemos também (re)conhecer os outros, para desenvolver essa ideia Friedmann convida para o diálogo Jorge Larrosa e Marie-Christine Josso com o conceito ideia de experiência que é aprofundado no decorrer da obra. No capítulo seguinte: “Estudos biográficos”, são apresentadas importantes referências acerca dos estudos e pesquisas biográficas e autobiográficas, com os conceitos que os integram. Fica evidenciada a urgência de propor o desafio de conhecer biografias e desenvolver escritas autobiográficas junto a diferentes grupos, tendo em vista que no momento histórico em que vivemos não se valoriza o conhecimento e na sociedade atual pouco se reflete “no cotidiano, sobre o cotidiano e sobre a necessidade de construção da consciência ética”. Ao abordar as pesquisas sobre as abordagens autobiográficas, os principais autores citados são: Gaston Pineau, com desenvolvimento de uma teoria de formação permanente a partir das histórias de vida; Pierre Dominicé, que traz em seus estudos a relevância do ensino personalizado a partir das narrativas de vida e textos biográficos; Marie-Christine Josso com o valor das histórias de vida na formação docente e Antônio Nóvoa com o enfoque da autobiografia na formação de professores, além de outros pensadores e estudiosos da área da psicologia, filosofia, sociologia que são apresentados com a relevância dos seus estudos para a temática. Com o encantamento metafórico de Manoel de Barros defende que “Quem se aproxima das origens se renova”, a autora revela a importância de compreender a própria história para poder acessar conhecimentos que muitas vezes ficam adormecidos. Todo esse processo de se voltar ao vivido demanda disponibilidade e tempo para que se viva a experiência que de acordo com o conceito posto por Larrosa, é “algo que nos acontece”, distanciando-se do excesso de informações desprovidas de reflexão que nos rodeia. Friedmann evidencia o quanto esses “mergulhos interiores” são transformadores e impactantes na história individual e coletiva de quem participa desse processo. Salienta que: […] todas e todos somos influenciadas (os) pelas nossas origens, países, culturas, geografias e grupos sociais nos quais nascemos e que nos constituem e perfazem os seres humanos em que nos transformamos. Cria-se, então, uma linha de pesquisa interessantíssima, que pode abrir, para qualquer ser humano, um leque de conhecimentos das suas próprias raízes, da sua linhagem, ao mesmo tempo que amplia horizontes, aprofunda o conhecimento da complexidade humana (p. 58). Ainda neste capítulo são anunciadas as contribuições de autores que são referências na área das pesquisas biográficas, como Gabriele Rosenthal com a metodologia e formas de sistematizar uma entrevista biográfica, a autobiografia interpretativa de Norman Denzin e o paradigma indiciário de Carlo Ginzburg. O terceiro capítulo é marcado por uma entrevista individual - estudo de caso com Rodrigo Rubido, em que a autora ao fazer a análise e apontar suas considerações sobre a entrevista retoma as ideias abordadas pelos pensadores que foram apresentados no capítulo anterior. No penúltimo capítulo “Trilhas das histórias de vida”, Adriana apresenta os caminhos etnográficos percorridos e desenvolvidos nos processos formativos, nos quais o reconhecimento de si e a imersão autobiográfica ocorrem de forma individual e coletiva. Relata que as etapas passam pela escrita de uma carta com memórias da infância, criação da árvore genealógica familiar para investigação das suas origens e raízes multiculturais familiares, identificação das influências, compartilhamento com o grupo, escolha de uma biografia ou autobiografia para ler e pesquisar aprofundando as pesquisas, e a partir da leitura de capítulos de “O código de ser” de Hillman e o convite para escrever-se um ensaio, estabelecendo uma relação entre as memórias de infância e as ideias propostas pelo autor. Ainda neste capítulo Friedmann relata um dos encontros-experiência com seu Grupo de estudos Biográficos em 2022, oportunidade que fizeram um entrelaçamento das jornadas autobiográficas com as artes, apresentando-se como caminhos necessários e possíveis para manifestação de quem somos. Por meio das linguagens expressivas, a autora conta sua relação com a arte e relata a experiência do grupo com barro no Ateliê Tapir. Impossível não se sensibilizar pela experiência relatada. A partir da descrição e de imagens, é possível perceber o envolvimento e a sincronia dos integrantes ao vivenciar a experiência de modelar a argila de olhos fechados, em dupla, com as mãos dadas utilizando na escultura apenas uma das mãos. Para essa realização cada participante precisou ser guiado, por meio de gestos, já que apenas um elemento da dupla teve acesso a palavra da imagem a ser moldada, e assim produziram a escultura. O último capítulo intitulado “Algumas contribuições das pesquisas biográficas”, a autora ressalta a importância das pesquisas biográficas para os processos de humanização das relações, considerando os valores éticos para apurar a escuta, respeitar a história e colher a singularidade do outro que são fundamentais. A leitura de “Jornadas autobiográficas” nos leva a involuntariamente mergulhar na nossa própria história e recordar momentos vividos, naturalmente somos levados a estabelecer conexões e a ganharmos consciência de diversos aspectos de nossa vida. A obra nos permite conhecer e nos aprofundarmos nos referenciais teóricos da abordagem biográfica e autobiográfica, e acompanhar as experiências conduzidas por Adriana Friedmann com seus grupos. Trata-se de uma obra altamente recomendada para educadores, arte-educadores, gestores, pesquisadores, ativistas sociais e todos os profissionais que buscam qualificar a escuta de crianças, jovens e adultos e para isso também precisam desenvolver processos para escutar, refletir e conscientizar-se sobre sua própria história. O desafio proposto por este produtivo ensaio é disseminar pesquisas autobiográficas e debates sobre a subjetivação no mundo que contribuem com a formação permanente daqueles(as) que atuam em escolas privadas, públicas e em projetos sociais dessas instituições. O leitor terá oportunidades de interagir com uma obra potenciadora na qual vale a pena investir.